Por Caroline Fantini
O Estado Novo se apresentou como algo novo, mudando para sempre a história brasileira. O que fora feito pelo Império ou pelos primeiros anos da República, não pode ser comparado com as transformações ocorridas no pós-1930. Somente a partir deste momento, o Brasil começou realmente a caminhar em direção à modernidade.
O novo discurso em questão estava presente, sobretudo, nas comemorações do Primeiro de Maio à época do Estado Novo. A partir de 1939, esta data começou a ser comemorada no Estádio Vasco da Gama, transformada em grande festa popular. Era um momento de interação direta entre as classes e o Estado, representado pelo próprio presidente Getúlio Vargas e sua comitiva. Contextualizando, o governo buscava várias formas de adesão da classe operária e a festa do primeiro de Maio pode ser considerada o ponto mais alto dessa intenção.
Segundo Maria Emília A. T. Lima (1990, p. 74):
Vargas escolheu assim este dia, cujo valor simbólico era decisivo para o movimento operário, para introduzir uma relação “nova” do Estado com “os trabalhadores”, a que ele apresentará suas leis, declarará “seu amor” e, ao mesmo tempo, se engajará na luta contra a miséria e os “elementos perigosos” da sociedade (de fato, contra uma parte dos próprios operários). Ele lhe ensinará o que é um governo, uma nação, uma revolução etc., e também como trabalhadores devem conduzir sua luta: no interior do aparelho do Estado. Ele tentará convencer as massas de que a revolução é indesejável, que ela seria nefasta aos próprios trabalhadores, que ela não lhes traria nada mais que o próprio Estado, dado que, depois de 1930, “as coisas mudaram” em seu favor.
De acordo com Rita de Cássia Amaral, em Festa à Brasileira – significados do festejar de um país que “não é sério” (1998, p. 25), a festa cívica promovida pelo Estado pode ser interpretada como um momento de aproximação entre os diferentes setores sociais hierárquicos. A autora, por meio da obra de Émile Durkheim, mostra como são os limites dos ritos representativos das recreações coletivas. Para Durkheim, a festa tem como objetivo: 1 – a superação de distâncias entre os indivíduos, 2 – a produção de um estado de “efervescência coletiva”, 3 – a transgressão das normas coletivas. Nesse período de festa, o indivíduo se anula em meio ao seu grupo e passa a ser parte de um coletivo.
A festa, portanto, torna-se um momento de reafirmação do sentimento que esse indivíduo tem de si mesmo e do coletivo que ele faz parte. Para a autora (1998, p. 26):
São imprescindíveis tanto as cerimônias festivas quantos os rituais religiosos para reavivar os “laços coletivos”, que correm, sempre, o risco de se desfazerem. Neste sentido, poderíamos imaginar que, quanto mais festas um dado grupo ou sociedade realizarem, maiores seriam as forças na direção do rompimento social às quais elas resistem. As festas seriam uma força contrária ao da dissolução social.
Nota-se que é um momento de resistência ao rompimento de laços sociais. Para o Estado Novo, especialmente para as comemorações do Dia do Trabalho, a festa visava celebrar o “pacto” proposto pelo Estado aos trabalhadores. Com o evento, Vargas se mostrava como um “cidadão comum”, um “igual”, numa tentativa de aproximação entre o poder estatal e o povo.
Baseando-se nas observações realizadas nessa pesquisa à respeito dos estudo retóricos, a intenção deste capítulo é mostrar como era retratada a festa do Primeiro de Maio e como era a interação do governo estadonovista e estes trabalhadores. As fontes usadas foram alguns jornais da época para exemplificar o modo como o discurso era moldado pelo presidente Getúlio Vargas e seus membros de Estado. Nas páginas desses jornais estão reproduzidas as falas dos cerimoniais da festa do Primeiro de Maio. É perceptível que à medida que o regime estadonovista foi chegando ao seu fim, o discurso estatal foi perdendo sua força, consideravelmente, na imprensa.
A "festa" e os jornais na época do Estado Novo
Como já dito, o Estado Novo passou a se relacionar de maneira peculiar com a imprensa. Do período que vai de 1930 a 1937, os meios de comunicação escritos já sofriam certa censura ou pressão do governo. Mas somente a partir da criação do Estado Novo e, principalmente, com a criação do DIP, que a censura tornou-se uma prática comum do regime, respaldada pela Constituição de 1937.
Em louvor a Glória do Trabalho – felizes são aqueles que fazem, da vida, um hino ao esforço humano, suplemento de uma página, contido na edição do Jornal do Brasil de 1º de maio de 1937, tem a missão de enaltecer a classe trabalhadora e o dia do trabalho. Na matéria, notam-se elementos que caracterizam o ato de trabalhar como um tipo de esforço humano que domina a natureza, como o texto O Operariado Brasileiro, o qual engrandece a postura dos operários brasileiros:
O operariado brasileiro desde cedo ganhou a consciência de si mesmo, da sua força, das suas responsabilidades, dos seus deveres e obrigações. Ele quasi não se debateu em greves e crises estereis, como o de outras nações, que longo tempo, hostilizaram a tudo e a todos, sem idéias certas e trabalhados por agentes nefastos da solercia, da maldade e da anarquia (...). Não há classes privilegiadas diante das quais os humildes, os operarios se conservam prosternados. Há, é verdade, o respeito mutuo que deve existir em sociedade, como razão de seu progresso; há disciplina, que é o acatamento as ordens necessárias ao desenvolvimento de qualquer obra, seja ela material ou moral (...). O operario brasileiro vê no seu patrão um superior hierárquico (...). O patrão brasileiro, com uma alta compreensão da realidade, foi o primeiro a colaborar nessa obra de proteção ao operário.
De acordo com a Retórica, é necessário para o orador conhecer seu público-alvo para obter sucesso em seus discursos. O exemplo acima mostra claramente que a mensagem transmitida tem a finalidade única e específica de “pacificar” a classe operária para que esta não tenha consciência de sua real situação, frente a uma hierarquia que possui a figura do “patrão” no topo da pirâmide.
Na sequência do artigo, há outro texto denominado O Operariado Brasileiro e o Comunismo, que descreve uma crítica agressiva sobre o Comunismo, tido como um inimigo da nação. Nela, o orador faz uso de sua credibilidade para justificar seus argumentos e transformar a opinião pública referente às ações comunistas:
A propaganda dos inimigos da ordem e da família, da sociedade e até de Deus dirigem suas baterias de reclame para as classes operarias (...). o comunismo não representa um ideal avançado, mas uma pavorosa aspiração de retrocesso (...). E nas fábricas, nas oficinas, que os agentes de Moscou, disfarçados de trabalhadores, fingindo sentimentos de solidariedade humana que não possuem, se introduzem solenemente, afim de infiltrarem no espírito dos operarios as suas idéias falsas (...). O trabalhador nacional compreendeu e bem que se se realizasse o nivelamento das classes, tal como quer a Rússia Vermelha, a revolução social nos reconduziria a um estado coletivo, homogêneo e amorfo, que saimos por lenta evolução milenaria.
De acordo com Halliday (1990, p. 32), “ao recriar na mente de alguém uma cena ou experiência, nossa ação retórica acrescenta algo novo à experiência de quem nos leu ou ouviu. E isso pode provocar a alteração da maneira de encarar um evento ou situação” (...). Em outras palavras, a ação retórica pode mudar a percepção de um indivíduo ou grupo e, ao mesmo tempo, ampliar o conhecimento da realidade.
Para estudiosos da Nova Retórica é essencial uma linguagem simples e comum para a construção de seu discurso. Para isso, deve-se levar em conta que os indivíduos têm suas particularidades, ou seja, pontos de vista diferentes. É vital para o sucesso da argumentação que o orador tenha um vocabulário bem preparado, além de conhecer o seu auditório para fundamentar seus argumentos. Segue o exemplo, constituinte da coluna Dia de Alegria e Fraternidade:
É por causa dessa compreensão admirável entre patrões e operários sob a égide da Lei, distribuindo justiça, corrigindo imperfeições que tão naturais na humanidade, que o Dia do Trabalho é hoje, uma data festiva para o Brasil (...). Nada de greves, nada de meetings, nada de protestos e agitações (...). E se o agente vermelho quer insinuar-lhe perversidades e perfídias, ele volta-lhe as costas com energia certa de que seu verdadeiro inimigo é aquele que vem perturbá-lo no seu trabalho e na sua tranquilidade.
Este artigo termina enaltecendo o clima de ordem e harmonia, componentes das comemorações do Dia do Trabalho. O orador sugere que o trabalhador brasileiro esta satisfeito com a sua situação, não dando atenção a “possíveis ameaças”, já que seu trabalho lhe garantia paz e tranquilidade.
Até a formação do Estado Novo, a maior parte dos jornais não relatava com tanta importância a data comemorativa do Dia do Trabalho. As mudanças vieram pouco depois do Golpe de Estado, com a criação do DIP - Departamento de Imprensa e Propaganda – em 1939, o qual tinha por função organizar e propagar os ideais do novo regime. Contudo, a cobertura do Primeiro de Maio tornou-se um dos principais eventos da propaganda política do presidente Getúlio Vargas.
Os jornais da época passaram a disponibilizar discursos do Ministro do Trabalho, Valdemar Falcão. O conteúdo destaca a união do povo brasileiro em torno da ordem instituída por Getúlio Vargas:
Sr. presidente Getúlio Vargas (...) as manifestações da massa, o espírito de profunda identificação do Operariado Nacional com a obra renovadora do Estado Novo e com a ação vigilante, intrépida e patriótica de seu extraordinário chefe. Em todos os pontos do território brasileiro, numa homogênea reação de apelos ruidosos, enviaram-me os trabalhadores o mandato honroso que ora desempenho, para dizer de seus sentimentos de gratidão e de justiça, para com a Pátria e seu grande guia, neste dia festivo[1].
O discurso mantém o tom nacionalista e eleva os feitos do chefe de Estado. Isso explica o fato de que o orador deve se identificar com o seu público. De acordo com Meyer (2007, p. 35), “as virtudes morais, a boa conduta, a confiança que tanto umas quanto outras suscitam conferem ao orador uma autoridade”.
Nessa perspectiva, o uso dos meios de comunicação faz com que o orador influencie o pensamento do auditório de modo a modificar sua opinião sobre determinada questão. Assim, o exemplo descrito esclarece que o orador, por meio de recursos linguísticos, exalta as realizações do governo, firmando o caráter (o ethos) de seu chefe de Estado. Sobre isso, Meyer (2007, p. 22) descreve:
Para que haja Retórica, é preciso um orador, um auditório ao qual ele se dirija e uma “mídia” por meio da qual eles se encontrem, para comunicar o que pensam e trocar pontos de vista. Essa “mídia” é sempre uma linguagem, que pode ser falada ou escrita, mas também pictórica ou visual (...).
Reboul (1998) acentua a importância do equilíbrio entre o ethos, o pathos e o logos. Assim, a ação retórica torna-se eficiente aos objetivos de seu orador.
Em discursos políticos, o gênero deliberativo, influencia determinadas decisões ou projetos. A questão da utilidade dos argumentos é julgada pelo espectador. Cabe, portanto, ao orador reconhecer suas diferenças em relação às particularidades de seu público e desenvolver um discurso universalizado, diminuindo a “barreira” que o distancia de seu auditório. Este fato, pontua Aristóteles, é fundamental para a constituição dos argumentos do orador, pois o discurso pode gerar questionamentos por parte do público-alvo. De acordo com Halliday (1990), todo processo argumentativo possui questionamentos. O orador “convida” seu auditório a ser co-participante da construção retórica, a fim de analisar se os seus argumentos são sustentados pelas questões levantadas pelos seus espectadores.
Os discursos do Dia do Trabalho atendem de modo eficaz as estruturas defendidas para a eficácia da ação retórica. Como mostra o fragmento:
Trabalhadores do Brasil (...). Desde 1930, conservamos a mesma linha de ação, e, sempre que surgiram obstáculos e dificuldades, os trabalhadores manifestaram ao Governo Nacional, de modo inequívoco, a sua espontânea solidariedade, numa eficiente atitude de repulsa aos surtos da anarquia e aos golpes extremistas (...). Para atingirmos tais resultados, não dividimos brasileiros, não criamos castas, não cultivamos o ódio, não abrimos lutas, não tentamos nivelamentos destruidores do valor individual, oriundos de desvairadas utopias[2].
Por meio do vocativo “Trabalhadores do Brasil”, o sentido da palavra “trabalhadores” remete-se aos cidadãos como responsáveis pela construção e desenvolvimento da pátria. Getúlio Vargas, no papel de orador, induz a “massa” a acreditar que o futuro econômico do país passa pelas as mãos do trabalhador e sua capacidade de realização numa ação coletiva entre Estado e Nação, situação sintetizada em expressões como “não dividimos brasileiros” e “não tentamos nivelamentos destruidores do valor individual”. Estes termos, ao mesmo tempo, provam os efeitos da função retórica: a mediação eficaz entre orador e auditório.
Em poucas palavras, o Primeiro de Maio de 1939 foi celebrado como uma grande festa nacional. O rádio, outro importante meio de comunicação da época, teve seu papel de destaque na transmissão de discursos e notícias, referentes ao regime estadonovista. O governo de Getúlio Vargas conseguiu grande adesão das camadas populares, criando um novo tipo de relacionamento entre os trabalhadores e o Estado.
Um artigo do Jornal do Brasil, com o título O Milagre da Ordem, de autoria de Átila Soares, resume bem argumentos e o clima de festa do Dia do Trabalho:
As metralhadoras substituem-se por granadas festivas, as greves de outrora sucedem-se passeatas cívicas, em que ombreiam patrões e empregados, nivelados todos na mais nítida compreensão das responsabilidades respectivas, o próprio povo em regozijo, patrulha orgulhoso a cidade (...).
Eis o Milagre da Ordem, realizado graças a atuação presidencial de um homem, que assumiu a direção do Brasil (...). Se dignou colocar seu dedo mágico sobre o Brasil, salvando-o da anarquia e do caos[3].
Mais uma vez a ação retórica esta concretizada por meio do tripé ethos, pathos e logos. Como assinala Meyer (2007), o auditório é passivo e se submete ao orador e ao seu discurso, Mas o logos faz a diferença entre o discurso racional e aquele que provoca paixões e engrandece a emoção, fazendo com a razão seja esquecida. O autor completa que para tanto, o “bem-falar” é a verdade em que aquele que fala possui legitimidade e autoridade moral para fazê-lo.
O Estado Novo trouxe a paz que o Brasil necessitava, afastando qualquer possibilidade de conflito. O triunfo é dado graças à postura assumida pelo presidente Getúlio Vargas.
As reportagens dos anos seguintes, referentes ao Primeiro de Maio, abordam com mais intensidade a importância da data para a nação brasileira. Uma manchete de capa do Jornal A Noite, de 1º de maio de 1943, exemplifica a posição do orador Getúlio Vargas frente aos cidadãos do Brasil. O título da reportagem Para Frente! É a voz de comando da Nação Brasileira e o seu subtítulo Vargas: Quem não estiver conosco está contra nós. Com os homens de trabalho e com todas as forças vivas da nacionalidade sei que posso contar é mais uma prova que o orador, por meio de seu discurso deliberativo, consegue atingir “os corações” da massa. Trechos como “homens de trabalho” e “forças vivas de nacionalidade” provam os conceitos abordados pela Nova Retórica: o uso de uma linguagem simples e comum a um auditório universalizado.
Sob o governo do novo Ministro do Trabalho, Alexandre Marcondes Filho, os discursos da ditadura de Vargas relembram feitos realizados pelo presidente em anos anteriores:
(...) A pouco e pouco uma legislação monumental se foi erguendo sob o império duma vontade irredutivel, que venceu todos os obstaculos e dominou todas as convicções. O trabalho dos homens, agora, está justamente remunerado, a estabilidade lhe garante o futuro e a previdência lhe ampara a velhice (...).
Os trabalhadores brasileiros quiseram renovar o tradicional encontro com V. Exa. Getúlio Vargas, onde hoje se levanta o Palácio do Trabalho, para renovar a declaração do seu reconhecimento, gratidão e confiança ao grande guia[4].
O Ministro do Trabalho enobrece a figura de Vargas e deixa claro que as promessas foram cumpridas com vontade irredutível do Estado. Neste exemplo, o discurso retórico muda suas estratégias para garantir a credibilidade e a confiança de seu público, utilizando a “retrospectiva” para manter o ethos do Chefe de Estado e seu governo.
Entretanto, o discurso de Getúlio Vargas traz um tom diferente do de Marcondes Filho, porém, ambos possuem o mesmo intuito como oradores: valorizar o ethos institucional[5]. No trecho a seguir, embora o recurso da retrospectiva esteja presente, Vargas dirige-se como “Íntimo” da Nação, utilizando a constituição do logos para retratar o trabalhador brasileiro:
O trabalhador brasileiro nunca me decepcionou. Diligente, apto a aprender e a executar com enorme facilidade, sabe ser também bom patriota. A essas disposições, o Governo responde com uma política trabalhista que não divide, não discrimina, mas ao contrario congrega a todos, conciliando interesses no plano superior do engrandecimento nacional (...) afastando a luta de classes e estabelecendo as verdadeiras bases da justiça Social[6].
O discurso como prática social é dotado de características persuasivas, pois todo orador político busca interagir com seu auditório para conseguir adesão por meio da linguagem.
A ideologia transforma pessoas em agentes sociais. Altera significados de posições diversas nas relações de poder. Desse modo, na concepção de Althusser, o orador funciona como uma “dimensão ideológica” relacionada aos Aparelhos Ideológicos do Estado. O discurso político, portanto, é dominante, pois representa um conjunto de ideologias específicas, de grupos que representam a sociedade.
Os discursos do Estado Novo, apresentados nessa pesquisa, provam a intenção do regime: o domínio das classes populares. Sem dúvida, a posição do Estado é determinante para a manipulação de seu auditório - uma preocupação com a imagem do ethos institucional perante a sociedade. Além disso, o orador procura a todo tempo demonstrar ética em suas palavras para a adesão do público as suas teses[7].
[1] Jornal A Noite, 1º de maio de 1939.
[2] Jornal A Noite, 1º de maio de 1939.
[3] Jornal do Brasil, 4 de maio de 1939.
[5] O ethos institucional refere-se à imagem (caracterização) do Estado Novo.
[6] Idem.
[7] O argumento ético esta relacionado ao ethos e a imagem que o orador quer transmitir de si mesmo.
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