domingo, 14 de agosto de 2011

MARIDOS E AMANTES: as possibilidades do masculino nos contos de "A vida como ela é"



Por Esdra Marchezan Sales
 
Mestrando em Literatura e Interculturalidade – MLI
Universidade Estadual da Paraíba - UEPB

RESUMO
A predominância do masculino na ficção produzida no século XX, abordando as relações amorosas e sexuais, é notoriamente percebida nas obras de autores importantes da literatura universal. No entanto percebemos que, em alguns casos, a infidelidade e liberação sexual feminina se transformam em instrumentos que ampliam as possibilidades de ‘ser mulher’ das personagens femininas e, (des) constroem identidades e arquétipos do masculino. Na perspectiva dos Estudos Culturais e das Representações de Gênero pretendemos analisar neste artigo as visões do masculino em contos de A vida como ela é..., escrita entre 1951 e 1961 por Nelson Rodrigues, tomando como referência as figuras do marido e do amante, e verificar as rupturas provocadas pelo feminino na estrutura dominante masculina.
Palavras chaves: Diversidade. Gênero. Masculino.

GÊNERO E DIVERSIDADE
Presente na história social da humanidade desde o início, a diferença entre o masculino e feminino tornou-se, nas últimas décadas, tema de discussões acadêmicas interessadas em identificar os elementos sociais, culturais e simbólicos infiltrados no processo que legitima uma das partes (masculino) como figura dominante e a outra (feminino) como dominada. Na própria tradição judaico-cristã o fenômeno da criação aponta um discurso onde o masculino predomina sobre o feminino, este último criado a partir de uma costela do primeiro homem, fruto da invenção divina. Na evolução dos tempos o discurso da dominação masculina foi se legitimando a ponto de impor à mulher o sentido de um ser diferenciado e submisso, onde mesmo as melhores qualidades possíveis são inferiores às pertencentes ao homem. Sayão (2003) considera que na diferença entre os órgãos genitais (masculino e feminino) está um primeiro elemento que vai ser responsável pela condição imposta a ambas as partes, onde as construções culturais vão evidenciar significados e práticas responsáveis pela desigualdade que vai colocar em confronto os dois sujeitos.
“A simples observação dos órgãos externos diagnostica uma condição que deve valer para toda a vida. Passamos a ser homens ou mulheres e as construções culturais provenientes dessa diferença evidenciam inúmeras desigualdades e hierarquias que se desenvolveram e vêm acirrando ao longo da história humana, produzindo significados e testemunhando práticas de diferentes matizes” (SAYÃO, 2003, p.122).
Os estudos científicos e a atuação de grupos feministas foram primordiais para a evolução e mudança desse discurso histórico, onde o fenômeno das diferenças entre homens e mulheres era atribuído a distinções biológicas. O debate sobre este tema apontou que a legitimação de práticas opressoras e dominantes atribuídas a um dos sexos estava ligada às construções sociais, simbólicas e culturais e não à sexualidade biológica do sujeito. A partir de então o fenômeno das distinções entre os dois sujeitos passou a ser analisado sob o conceito de gênero, buscando compreender conflitos enfrentados por ambos seja no trabalho, vida pública, sexualidade e família. (GOUVEIA, 1999). Partindo desse pressuposto, Scott (1995) define que “gênero é um elemento constitutivo de relações sociais baseadas nas diferenças percebidas entre os sexos. É uma forma primária de dar significações às relações de poder” (SCOTT, 1995, p.86). As representações da sociedade sobre o que é considerado homem, mulher ou homossexual estão baseadas no conhecimento das diferenças sexuais e criações sociais. Isso é o que chamamos de representações de gênero. (SCOTT, 1995).
Em toda sua obra, sejam nas peças teatrais, crônicas, contos, folhetins, reportagens, Nelson Rodrigues encontrou na relação entre homem e mulher um tema a ser explorado, de onde seria possível absorver uma parcela muito rica da existência humana. O ser humano com seus defeitos mais íntimos sempre foi o personagem principal da narrativa rodriguiana. Talvez por essa proximidade com o íntimo do sujeito, a obra dele conquistou o interesse popular e se traduziu em um importante momento do teatro e da literatura brasileira. Os contos literários escritos diariamente na coluna A vida como ela é..., no jornal Última Hora entre 1951 e 1961, se transformaram em um espaço onde Nelson Rodrigues experimentava a “descoberta do ser humano”, como ele mesmo explicou em entrevista á Playboy, em novembro de 1979:
Você sabe qual foi a coisa decisiva na minha obra? Foi A vida como Ela É, que eu escrevi durante dez anos na Última Hora, na década de 50. Durante dez anos eu fiz uma história por dia, todo dia eu escavava um pouco mais o chão do ser humano. Eu me sentava e, até aquele momento, não tinha pensado em nada. Em cinco minutos, a história ia surgindo, eu ia desenvolvendo e, ao mesmo tempo, me surpreendendo com uma série de descobertas. Era sempre a história de uma traição. Depois eu fazia daquilo uma peça, um drama, uma comédia. Eu teria a vida toda para escrever peças e romances tirados de A vida como Ela É.” (WERNECK, 2005, p.133).
A experiência como repórter policial nos jornais A Manhã e Crítica, de seu pai Mário Rodrigues, fez com que Nelson encontrasse um ambiente de criação literária. Quase todas as estórias de A vida como ela é... tratavam de traições conjugais, sempre provocadas por mulheres insatisfeitas com os maridos e em busca de uma nova forma de amor e sexo, traduzida na figura do amante. Na literatura rodriguiana a estrutura da “dominação masculina” (BOURDIEU, 2002) sofre uma ruptura que dá ao feminino a capacidade de exercer o poder dominante em determinado momento, relegando ao masculino o papel de dominado, nas figuras do marido e do amante.
Na década de 50, quando foram escritos os contos de A vida como ela é, a preservação de um corpo puro e livre de desejos estava diretamente ligada à honra familiar que as mulheres deveriam carregar. Para os homens a honra estava vinculada à sua virilidade, associada à potência sexual, determinando a hegemonia do poder masculino na sociedade. A traição feminina se traduzia exatamente na ruptura com a estrutura dominante, já que o corpo se transformava em objeto de livre arbítrio da mulher. Para Bourdieu (2002) o corpo é o lugar que abriga as disputas pelo poder, é nele que o capital cultural do sujeito está inscrito. O corpo é a materialização da dominação, é o locus do exercício do poder. Ele chama de violência simbólica a função exercida pelos sistemas que impõem ou legitimam discursos que criam o papel de dominante a uma classe e o de dominada à outra.
“É enquanto instrumentos estruturados e estruturantes de comunicação e de conhecimento que os sistemas simbólicos cumprem a sua função política de instrumentos de imposição ou de legitimação da dominação, que contribuem para assegurar a dominação de uma classe sobre outra (violência simbólica) dando reforço da sua própria força às relações de força que as fundamentam e contribuindo assim, segundo a expressão de Weber, para a ‘domesticação dos dominados” (BOURDIEU, 2002, p.11).

INVERSÃO DE PAPÉIS: O MASCULINO AMEAÇADO
Se nos contos rodriguianos a dominação masculina em posta em xeque há algo que provoca a ruptura desse poder legitimado pelas estruturas simbólicas descritas por Bourdieu (2002). Uma análise dos contos nos apresenta marcas que apontam os possíveis elementos que provocam essa inversão de papéis. Nas narrativas rodriguianas os maridos são descritos como figuras doentes, sem autoridade familiar e fracos fisicamente, características opostas às necessárias à virilidade. “A virilidade é o princípio da conservação ou do aumento da honra, mantém-se indissociável, pelo menos tacitamente, da virilidade física”. (BOURDIEU, 2002, p.20).
Nos contos Casal de Três (CDT) e O Aleijado (OA)1 os maridos – Filadelfo e Domício, respectivamente – são figuras fracas, sem autoridade e doentes. O primeiro sofre todo o tipo de agressões da mulher (Jupira), mas não tem nenhuma atitude capaz de conter aquela situação, mantendo-se submisso às ordens da esposa.
“Sua vida conjugal era, de fato, de uma melancolia tremenda. Descontado o período da lua-de-mel, que ele estimava em oito dias, nunca mais fora bem tratado. Sofria as mais graves desconsiderações, inclusive na frente de visitas. E certa vez, durante um jantar com outras pessoas, ela o fulmina, com a seguinte observação, em voz altíssima:
“-Vê se pára de mastigar a dentadura, sim!
Houve um constrangimento universal. O pobre do marido, assim desfeiteado. Só faltou-se atirar-se pela janela mais próxima.” (RODRIGUES, 2006, p.548-549).
Domício, o marido do conto (OA) tem seu personagem marcado pela deficiência que possui, chegando a ser o título do conto. Foi exatamente por este motivo que a mulher, Sônia, o escolheu como marido, na busca por um homem que a deixasse livre e não lhe apresentasse nenhum perigo ou ameaça.
Não pensava no marido, não admitia que o marido pudesse converter-se numa ameaça, num perigo ou, simplesmente, num obstáculo. Tanto que, na sua perversidade, escolhera, a dedo, entre muitos, o rapaz que lhe parecera mais cômodo e inofensivo. Então, envaidecida da própria malícia, soprou”:
-Sabe? Ele é aleijado!”. (RODRIGUES, 2006, p.74)”.
De acordo com Oliveira (2002) coragem e força física eram elementos que importantes na constituição do ideal de masculinidade e estavam sempre relacionados com a iniciativa e ousadia, elementos presentes na virilidade masculina. Assim a figura do marido na narrativa que faz parte de A vida como ela é... adquire uma imagem negativa e contrária ao padrão que a masculinidade supostamente exige. Além disso, os personagens também se confrontavam com o padrão da época, onde os maridos deviam ser os chefes de família, e detentores da autoridade dentro de casa.
Nos dois contos, os maridos descobrem a infidelidade das esposas, mas preferem manter o caso silenciado, aceitando a relação a três: mulher, marido e amante. Filadelfo (CDT) descobre que a mulher possui um amante, mas aceita a situação em virtude da mudança de comportamento da mulher com ele.
Dias depois, porém, recebe uma minuciosíssima carta anônima, com dados, nomes endereços, duma imensa verossimilhança. O missivista desconhecido começava assim: “Tua mulher e o Cunha... O Cunha era, talvez, o seu maior amigo e jantava três vezes na semana, ou no mínimo duas, com o casal. A carta anônima dava, até, o número do edifício e o andar do apartamento, em Copacabana, onde os amantes se encontravam. (...) Uma conclusão se impõe: sua felicidade conjugal, na última fase, é feita à base do Cunha. Filadelfo continuou sua vida, sem se dar por achado, tanto mais que Jupira revivia, agora, os momentos áureos da lua-de-mel”. (RODRIGUES, 2006, p.550-551).
Domício (OA) não só descobre o caso como força o amante a manter o relacionamento com Sônia, quando fica sabendo que o mesmo está interessado em outra.
“Mas Sandoval não nascera para uma só mulher. A variedade era, na sua vida, um hábito, um vício, uma doença. Ele acabou se interessando por uma outra, também casada e também com um marido ingênuo e bom”.
E, então, mancando, Domício o procurou. Disse-lhe:
- Outra não, seu cachorro! Eu não admito, ouviste? Te dou seis tiros!
De noite, Sandoval apareceu na casa dos dois. Depois do jantar, enquanto ele conversava com Sônia, Domício cochilava na poltrona.”(RODRIGUES, 2006, p.75)”.
Nesta perspectiva entendemos a narrativa rodriguiana como um elemento de cidadania na medida em que contribui com a ruptura de um esquema dominante legitimado há vários anos e proporciona ao feminino uma maneira de liberdade e poderio individual. Podemos acreditar que na ausência de virilidade dos maridos que compõem as narrativas de A vida como ela é... encontram-se os fatores que levam as mulheres a ir em busca de algo que sente falta, saciar o desejo do desconhecido, encontrar um outro homem. Um apontamento feito por Bauman (2005) sobre a identidade do sujeito nos parece ser oportuno neste momento para exemplificar o que acabamos de afirmar.
“Quando a qualidade o deixa na mão ou não está disponível, você tende a procurar a redenção na quantidade. Se os compromissos, incluindo aqueles em relação a uma identidade particular, são insignificantes, você tende a trocar uma identidade escolhida de uma vez para sempre, por uma “rede de conexões”. (BAUMAN, 2005, p.37).
Outra possibilidade dada ao masculino na narrativa de Nelson Rodrigues é a de ser amante. O amante é o sujeito que supostamente estará livre de qualquer obrigação conjugal com a mulher, servindo apenas para satisfazer suas vontades e interesses em um jogo de duplo interesse. São personagens que se destacam por sua beleza, força física, astúcia e ousadia. Mas nos contos analisados neste trabalho, mesmo essa figura – oposta à do marido – não consegue se manter dominante diante de uma situação criada pelo feminino. Em CDT a descrição do Cunha, amante de Jupira, é baseada nos aspectos de beleza e ousadia, em contraponto aos elementos que caracterizam a figura de Filadelfo. Mas quando esse decide sair da relação com Jupira e se casar com outra tem seu planos frustrados por Filadelfo, que usa da violência para impor sua vontade ao amigo.
“Pensa no Cunha, que é solteiro, simpático, quase bonito e tem bons dentes. (...) Passa-se o tempo e Filadelfo recebe a notícia: o Cunha ficara noivo! (...) Vai numa gaveta, apanha o revólver e sai à procura do outro. Quando o encontra cria o dilema:
- Ou você desmancha esse noivado ou dou-lhe um tiro na boca, seu cachorro!
No dia seguinte, o apavorado Cunha escreve uma carta ao futuro sogro, dando o dito por não dito. À noite, comparecia, escabriado, para jantar com o casal. E, então, à mesa, Filadelfo vira-se para o amigo e decide:
- Você, agora, vem jantar aqui todas as noites!” (RODRIGUES, 2006, p.550-551)”.
Em (OA) Sandoval, o amante de Sônia, é descrito como um homem que é contrário ao casamento e preserva uma obsessão de gostar apenas de mulheres casadas. Cínico ele faz questão de se apresentar como amante aos amigos e é taxativo quando lhe pergunta sua opinião sobre os maridos: “...o marido, em geral, é um idiota chapado”. (RODRIGUES, 2006, p.73). Mas, assim como Cunha, ele não consegue se desprender da amante quando perde o gosto por ela e é obrigado pelo marido de Sônia a manter a relação. Para Zechlinski (2006) estes contos ridicularizam os maridos que não correspondiam à norma do marido com poder, controlador da mulher e com ironia criticam os maus casamentos.
Dessa forma Perrot (1988) enxerga a possibilidade das mulheres exercerem poderes, evitando a idéia de uma dominação universal passiva como descreveu Pierre Bourdieu. Para ele uma análise linear da dominação masculina é um erro, já que as mulheres também foram sujeitos dessa época. “As mulheres exercem domínio no cotidiano, nos bastidores, escapando da dominação e criando elas mesmas o movimento da história”. (PERROT, 1988, p.176). A traição conjugal descrita na narrativa rodriguiana seria uma forma de ação, que segundo Sayão (2003) “...resistem ao sistema e fissuram, causando rupturas no poder dominante”. (SAYÃO, 2003, p.138). Colocar em questão ou mudar um aspecto ameaça o sistema completo. A partir do momento em que o sujeito dominado tem consciência de sua condição e protesta, a dominação tem sua eficácia ameaçada e desmorona.

REFERÊNCIAS
BAUMAN, Zygmunt. Identidade: entrevista a Benedetto Vecchi. Tradução: Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005.
BOURDIER, Pierre. A dominação masculina. 2. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002.
CASTRO, Ruy. O anjo pornográfico: a vida de Nelson Rodrigues. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.
GOUVEIA, Taciana & CAMURÇA, Sílvia. O que é gênero. SOS corpo. Vol 1 Recife: Ute Feldmann, 1999.
OLIVEIRA, Pedro Paulo Martins de. A construção social da masculinidade. Tese de Doutorado em Sociologia. Universidade de São Paulo (USP), 2002.
PERROT, Michelle. Os excluídos da história: operários, mulheres e prisioneiros. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.
RODRIGUES, Nelson. A vida como ela é... Rio de Janeiro: Agir, 2006.
SAYÃO, Débora Thomé. Corpo, poder e dominação: um diálogo com Michelle Perrot e Pierre Bourdieu. In: Revista Perspectiva, v.21 n.01, jan/jun. Florianópolis: Editora da UFSC, 2003.
SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Porto Alegre: Educação e Realidade, 1995.
ZECHLINSKI, Beatriz Polidori. Imagens do casamento e do amor em Nelson Rodrigues: um estudo das representações de gênero na literatura publicada em jornal entre 1944 e 1961. Dissertação de Mestrado em História. Universidade Federal do Paraná, 2006.
WERNECK, H. & RODRIGUES, T. C. Playboy entrevista Nelson Rodrigues. As 30 melhores entrevistas de Playboy. São Paulo: Abril, 2005.

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